quinta-feira, 23 de julho de 2015

Análise da Figura do “Bode de Mendes” Segundo as Dimensões da Cosmovisão Religiosa


A figura do Baphomet como conhecemos hoje, na realidade, se faz distante do que realmente fora  o Baphomet na época dos Cavaleiros Templários. Precisamos primeiramente separar as histórias e os símbolos que estão envolvidos com esse nome tão temido pela maioria, mas sem justificativa, já que esse medo se deve ao desconhecimento da figura em questão e de sua história. Já não é de hoje que certas religiões tendem a “demonizar” deuses, entidades e símbolos de outras religiões e doutrinas. Não foi diferente no caso da figura alegórica do Baphomet.
Como bem sabemos, alegoria se deve – no geral - à criação simbólica de uma imagem, história ou canto que tem por finalidade “enxugar” ou simplificar algo muito amplo, ou uma tentativa de tornar algo muito hermético em uma coisa mais clara de se entender para o público mais geral, tal quais as famosas alegorias de Platão nos livros da República dedicados à teoria do conhecimento. A figura do Baphomet é também uma alegoria, criada primeiramente pelos Cavaleiros Templários, e muito posteriormente modificada e transformada no Bode de Mendes pelo ocultista e filósofo Eliphas Levi.
Antes de tudo, devemos deixar bem claro que a história até hoje não nos deixou nada de muito concreto no que diz respeito a pesquisas em relação ao culto templário, deixando o assunto obscuro e soterrado por diversas teorias da conspiração. Mas podemos dizer que em primeiro lugar temos o Baphomet como figura cultuada pelos Cavaleiros Templários, extintos no século XIV a mando do Papa Clemente V e pelo rei da França Felipe IV, mais conhecido como Felipe, o Belo. O processo de inquisição contra a Ordem dos Cavaleiros Templários (A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo) só termina com a morte de seu último integrante, o Grão-Mestre da ordem Jacques De Moley. Dentre os motivos dados para tal processo estavam a recusa de sacramentos, negação de Cristo, práticas de sodomia e veneração a uma entidade maléfica de três cabeças, isto é, o Baphomet. Claro que na época o nome Baphomet ainda não era empregado, esse termo – acredita-se - foi surgir somente no século XIX, pelo arqueólogo Barão Joseph Von Hammer-Pürgstall, simpatizante da causa templária.
Mas essa figura de três cabeças talvez cultuada de alguma forma pelos templários não é o nosso foco, e sim o Baphomet conhecido por Bode de Mendes (ou Bode do Sabá) criado por Eliphas Levi, no intuito de sintetizar os principais aspectos do conhecimento atribuído pela ciência oculta. Foi em sua obra “Dogma e Ritual de Alta Magia” que Eliphas Levi apresentou todo o processo do aprendizado mágico, a utilização da cabala como ferramenta principal de toda cultura esotérica ocidental e a figura do Bode de Mendes como síntese dos segredos e conhecimentos obtidos por meio do ocultismo e da magia, ou seja, o homem realizado.
Comecemos então a análise da figura do Baphomet. Em primeiro lugar, é possível extrair muitos elementos ligados ao aspecto Ontológico na figura. Toda a representação do Baphomet é composta pela dualidade das coisas. A começar pelos braços e mãos, uma voltada pra cima, apontando a Lua branca de Chesed (a Sephiroth correspondente a Misericórdia na Árvore da Vida) e outra voltada para baixo, apontando a Lua Negra de Geburah (a Sephiroth correspondente a Justiça). O braço voltado para cima é feminino, e o outro é masculino. No braço voltado para cima, encontra-se a palavra “Solve”, e no outro a palavra “Coagula”, uma menção clara à frase alquímica “Solve et Coagula”, que significa “Dissolver e Juntar” ou “Separar e Unir”. O caduceu hermético no lugar do falo masculino e os seios femininos, isto é, os dois símbolos provedores da vida, e o caduceu representando a moral e a inteligência, ou mesmo a utilização da potencialidade da energia kundalini para transformar a Potência em Ato, o eterno movimento cósmico. As mãos postas com a simbologia mágica da Tábua Esmeralda hermética em referência a frase: “O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo”. Abaixo do bode, temos a esfera rotunda do conhecimento misturada na escuridão, ao mesmo tempo em que a cima do bode temos o facho da inteligência, isto é, a luz do conhecimento universal, que ilumina a mente dos homens e faz com que conheçamos a verdade sagrada. E finalmente temos o abdome coberto por escamas, representando o elemento água, ou o lado sentimental e mais revolto do ser, enquanto as asas negras do corvo representam a sutileza do elemento ar ou mesmo o volátil químico, isto é, a rápida “evaporação” daquilo que não faz parte do sagrado, ou ainda aquilo que é material e ilusório. 
Todas essas dualidades que são representadas no Baphomet, têm por objetivo principal resguardar o verdadeiro mistério por trás dessa figura: a relação do Bem e do Mal. Na magia não há a distinção de bom e mal medidos por uma ética religiosa comum. O Bem e o Mal estão no âmbito ilusório, da ignorância, ou seja, para atingir a verdade sagrada é preciso que essa distinção seja diluída pela luz da sabedoria, de forma que os dois conceitos se misturem, porque só assim a verdade pode ser tocada. A ideia de Deus e Diabo fica suspensa aqui, tendo mais importância o autoconhecimento do homem do que a adoração de algum Ser externo, sendo ele Deus, Diabo ou qualquer outro. Pode-se dizer então que a relação entre o absoluto e o relativo está no autoconhecimento livre de crenças externas e ilusórias.
A cabeça de bode faz menção não só aos cultos de origem druida e grega à fertilidade, mas também fora escolhida por dois outros motivos. Nos sistemas mágicos o bode representa o contrário da ovelha. Enquanto a ovelha representa a passividade e a paz de espírito, o bode representa o aspecto negativo da existência. Ao mesmo passo que a cabeça de bode torna-se horrenda atrelada ao corpo humanoide. A cabeça de bode represente o horror do pecado sofrido pelo homem, pecado este que é culpa somente do agente material. A alma por sua vez é neutra e impassível naturalmente, e chega a sofrer as consequências do pecado e da corrupção no momento em que se materializa. Aqui começamos enxergar os aspectos Antropológicos da imagem, isto é, as condições básicas do ser humano.
A título de exemplo, vemos no catolicismo o pecado original como condição básica do ser humano, tal qual a determinação cósmica para algumas religiões orientais. Na Alta Magia o homem precisa lhe dar com o fato de estar aprisionado à matéria e entender que o sofrimento não faz parte da sua natureza, mas este se faz presente ao passo que não conseguimos nos distanciar da ignorância comum. Mas esse movimento não é definitivo. Precisamos nos encontrar em constante metamorfose, pois a permanência não faz parte da lógica natural, a durabilidade não é natural.
O princípio da transmutação da natureza humana por meio do verdadeiro conhecimento das coisas. Na alquimia, o chumbo representaria a ignorância das coisas sagradas, ou seja, o homem ignorante e profano. O homem, portanto, deve dissolver as concepções tradicionais e os conceitos do senso-comum, para que depois, enxergando como as coisas funcionam e entendendo melhor a realidade, ele junte os cacos que restaram dos conhecimentos obsoletos e passe a reconstruir tudo do zero, resultando assim no ouro, elemento que representa o Sol, o deus Apolo, a sabedoria. Seria essa então a condição básica do homem na Alta Magia, a mudança, o movimento.
Por fim, chegamos ao símbolo da estrela de cinco pontas, cabalisticamente conhecido como Pentagrama. Vulgarmente, esse símbolo é considerado a representação dos quatro elementos materiais – terra, água, ar e fogo – e o quinto elemento, sendo ele etéreo, isto é, o espírito, ou éter.  Mas na prática da mágica, tanto da Alta Magia quanto das magickas de cunho thelêmico ou posterior, o pentagrama representa não só os cinco elementos, mas a cima de tudo representa todo o microcosmo. A estrela de seis pontas, conhecida por “Estrela de Salomão”, é na realidade a sobreposição das duas trindades, uma de polo negativo e outra de polo positivo, representando o macrocosmo, isto é, possuindo uma visão mais geral da realidade. Já o Pentagrama possui uma métrica mais perfeita e complexa, desse modo tornando-se mais poderoso à medida que o iniciado na magia o entende de forma correta. O conhecimento do símbolo não basta, é preciso entendimento. O entendimento se dá por meio da evolução de nossos órgãos provedores dos sentidos, que por sua vez, devem ser trabalhados para que consigam tocar o plano etéreo. Resumidamente falando, o pentagrama não se encontra postado na testa do bode, mas sim no seu “terceiro olho”. Portanto, está representado no Baphomet o conhecimento pleno do pentagrama e de tudo o que ele representa.
É difícil expormos todos os conceitos envolvidos na figura do pentagrama, já que seu conhecimento está ligado à prática da magia e do autoconhecimento do iniciado. É um conhecimento muito pessoal. Mas de forma geral, pode-se dizer que a figura do pentagrama está ligada de certa forma à ideia de salvação. Aqui podemos então apontar a questão da Soteriologia representada no Baphomet.
Na magia, a salvação está ligada à ideia de conhecimento de si e do mundo natural por meio dos sistemas mágicos extraídos de diversas religiões, filosofias e ciências. Na magia mescla-se a Cabala, a Alquimia, o Ocultismo, práticas medicinais antigas, Yoga, técnicas de invocação entre outras práticas antigas absorvidas pela cultura ocidental medieval e relidas nos dias de hoje. Por isso o Pentagrama é o símbolo mais importante para o mago, pois nele estão contidas todas as informações necessárias para o conhecimento oculto. O Pentagrama é o símbolo que expressa o domínio da Alma sobre a matéria e os elementos que a compõe. Ao final de tudo, a ideia é que o homem, por meio do sistema mágico atinja um grau de conhecimento e controle de si e da natureza que possibilite que ele manipule a natureza e tenha o poder de criar. “Para o mago falar é criar”.
Para finalizar, deixarei um pequeno trecho da obra “Dogma e Ritual de Alta Magia” onde Eliphas Levi resume bem a visão de mundo a partir da magia. E que partir de agora olhando para a figura do Baphomet possamos entender a extensão e profundidade do seu significado:


“Não há mundo invisível. Há apenas muitos graus de perfeição nos órgãos. O corpo é a representação grosseira e como se fosse a casca transitória da alma. A alma pode perceber por si mesma, sem a intermediação dos órgãos corporais por meio de sua sensibilidade e de seu diáfano, as coisas corporais e espirituais que existem no Universo.”

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Escritos acerca da religiosidade (parte 1)


Eu não me entendo, e como poderia? Não sou mais que uma ínfima existência em meio a um mar de estrelas, antigas e novas, e que ainda estão por nascer. Em meio a tudo isso, sou obrigado a fazer certas escolhas no decorrer da minha curta vida. Em alguns casos, essas escolhas não dependem somente de mim, mas também de uma série de eventuais detalhes. Quem nunca precisou fazer algo que não queria? Esse não querer pode ter origem na hierarquia familiar, como o pai e a mãe que mandam o filho fazer as coisas que eles julgam melhores. Ou pode também ter origem no convívio social em que o indivíduo está inserido e fadado a manter, como por exemplo, no trabalho. E veja que chato, nesse caso também a hierarquia entra em ação, com o seu chefe.
Mas voltando ao foco do texto, estou tratando aqui na realidade de algo muito maior do que o simples ato de obedecer ao chefe, o pai ou a mãe. Estou tratando aqui absolutamente do “religare”, isto é, do nosso lado religioso. Mas tenha calma, pois não estou tratando aqui da religião no sentido que estamos acostumados a conhecer, a religião como instituição.
A religiosidade vai muito além da religião. A religião é algo que o homem cria na intenção de fazer certo contato com o divino, ou em outras palavras, a religião é uma ferramenta, esboçada conforme a cultura de determinados povos, no intuito de tentar alcançar seres exteriores e superiores a nós. Na pré-história e na antiguidade, a religião servia como um tipo de explicação para fenômenos naturais que estavam além da compreensão do homem. Atrevo-me a dizer que a religião, até certo ponto, servia como uma ciência para as civilizações. Prova disso é o fato de inúmeras ciências terem tido suas raízes em costumes e ritos religiosos. A Alquimia, por exemplo, que mais tarde deu origem à Química.
Depois disso, a religião tomou outro formato, tendo suas raízes em escrituras e transferindo, muitas vezes, uma parte do poder de suas entidades divinas ao próprio homem. Que é o caso dos profetas e dos santos, por exemplo. Desde então, a religião pode ser utilizada também como uma ferramenta não só para explicar os fenômenos da natureza, mas também (e principalmente) para manipular grandes massas. A palavra “manipular” pode parecer um pouco indigesta para alguns leitores, mas na realidade, não estou querendo atribuir um caráter absolutamente ruim às religiões, apenas estou pontuando a minha visão no que se refere ao andamento histórico delas. Mas vou deixar para falar sobre as religiões em si em outra oportunidade.
Estou escrevendo esse texto justamente pela falta, pela lacuna, pelo espaço que eu sinto ecoando no SER quando falo desse assunto: religião. Pessoalmente, eu cultuo muitas entidades, deuses e deidades. Acredito e confio em muitos ritos de muitas religiões diferentes. Tenho minhas preferências e minhas ressalvas em todas elas. Mas mesmo assim, o que está faltando? Por que nunca é suficiente?
Devo esclarecer aqui, que a partir deste ponto, estarei tratando de algo que não se pode encontrar em qualquer mundo espiritual que possa ou não existir. Algo que não diz respeito às religiões institucionalizadas ou mesmo com qualquer deus ou deusa que já ouvimos falar. Vou tratar aqui da religiosidade no sentindo de “re-ligação”, isto é, a “re-ligação” com nós mesmo, com o EU.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Platão: Alegoria do Sol e Alegoria da Linha


Em um trecho da Carta VII, Platão trata de sua teoria do conhecimento. O próprio filósofo admite que o assunto pode ser difícil de ser entendido, e por mais obscura que tenha sido sua explicação, uma coisa é certa: mesmo na Carta VII, Platão deixa claro que o verdadeiro conhecimento se dá no intelecto, isto é, no mundo inteligível e o que nos guarda o mundo sensível são apenas as opiniões.
Na República, Platão trata mais detalhadamente a questão do conhecimento, mas dessa vez, por meio de três alegorias: “Alegoria do Sol”, “Alegoria da Linha” e a famosa “Alegoria da Caverna”. Trataremos aqui somente das duas primeiras. Antes de iniciar é importante frisar que, na República, o personagem central da obra é Sócrates. No entanto, sempre que me referir a alguém, vou me referir à Platão, não à Sócrates. Pois como todos sabem, existem inúmeras controvérsias no que diz respeito ao Sócrates de Platão.

Alegoria Do Sol

Platão começa tratando dos nossos sentidos, ressaltando que todo sentido (inclusive a visão, que segundo ele, fora feita pelo Demiurgo com mais “esmero” que os outros sentidos) necessita de um terceiro elemento além dele próprio e do objeto para que funcione direito. Para a visão, por exemplo, seria a Luz (o Sol). Ao olharmos para um determinado objeto, só conseguimos o enxergar em função da luminosidade, do contrário, se não houvesse luz nós nada conseguiríamos ver. 
Em caso semelhante, mas dessa vez no plano inteligível, o que possibilita que conheçamos as coisas e que enxerguemos a verdade é a ideia do Bem. O Bem fornece a verdade ao sujeito cognoscente que contempla as ideias, tal como o Sol fornece a luz para que o sujeito enxergue os objetos no plano visível.
Enfim, no mundo concreto o Sol é o que dá a possibilidade de ver, tornar as coisas visíveis para que assim possamos conhecer, ao passo que no campo da vida, torna as coisas possíveis. Novamente observamos a questão da prática nas ideias de Platão. Mas o Sol é o Bem, e o Bem não pode ser nada de concreto, pois está além do mundo visível. Então o Bem nos dá a verdade de nossos conhecimentos e nos dá a “concretude de nossa existência” sem que ele mesmo seja o conhecimento ou mesmo a existência, pois está além de tudo isso.
O Bem, então, é o fim. Não há nada além do Bem, ele é o limite de nossas ações, isto é, ele é o limite do conhecimento do homem. Depois das Alegorias do Sol e da Linha, Platão vai tratar na Alegoria da Caverna, a “ascensão” intelectual do homem até atingir o conhecimento das Formas por meio da educação (paideia). Para se atingir o Bem, é preciso a contemplação das Formas, e mesmo depois, não é possível traduzir esta contemplação em um discurso, já que a fala tal qual a escrita acabam por “corromper” o que foi contemplado. Essa ascensão do homem começa então no Conhecimento Empírico (dos fenômenos) e termina na contemplação das Formas.

Alegoria da Linha

Se na Alegoria do Sol Platão fez a divisão entre visível e inteligível, na Alegoria da Linha é onde o filósofo vai fazer a divisão das divisões, ou seja, ele vai dividir em duas partes tanto o mundo visível quanto o inteligível. Para melhor explicar isso, o filósofo vai dizer: “Supõe então uma linha cortada em duas partes desiguais; corte novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o da inteligível.” (A República – VI 509e)
Começamos então do mais baixo segmento, o da Imagem. O segmento das Imagens está presente dentro do mundo visível, sendo essas os reflexos no espelho, reflexo na água e as sombras. Acima da Imagem estão os Objetos sensíveis. Estes objetos são todas as coisas que conseguimos visualizar na natureza, ou seja, as plantas, as pedras e assim por diante. A imagem é meramente o reflexo ou a representação desse Objeto. Lembrando que ambos estão no campo do visível. É própria do mundo visível a Opinião (doxa), pois como já foi visto antes, o conhecimento empírico só nos fornecem dados “crus”, isto é, nós não chegamos a fazer uma investigação intelectual daquilo, coisa que só ocorre no campo do inteligível.
A outra metade da linha que corresponde ao mundo inteligível tem como primeiro segmento a Razão, onde estão os entes matemáticos e é onde se dá o Entendimento. E por fim, o último e mais elevado segmento é onde estão as Ideias, as Formas, o Belo. É aí que se toma a consciência. E é própria do mundo inteligível a Ciência e a Dialética. Neste ponto, a consciência não se serve de dados provindos do mundo visível, passando diretamente de ideia para ideia, fazendo exatamente esse movimento dialético. É aí que ocorre a contemplação e onde é obtido o conhecimento verdadeiro.
Neste momento do texto, logo no final do Livro VI, Platão (na figura de Sócrates) nos aconselha a aplicar as quatro operações da alma – Inteligência, Entendimento, Fé e Suposição – nesta ordem de forma decrescente aos quatro segmentos: “Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as aos quatro segmentos: no mais elevado, a inteligência, no segundo, o entendimento; ao terceiro entrega a fé, e ao último a suposição.” (A República – VI 511e).

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Teoria do Conhecimento na Carta VII de Platão



Esta é uma pequena introdução à Teoria do Conhecimento de Platão. Estarei postando aqui mais adiante alguns outros textos sobre as três alegorias que tratam do conhecimento: Alegoria do Sol, da Linha e da Caverna.

Na Carta VII, estão contidas as narrativas de Platão sobre as três viagens que fez à Siracusa. Na primeira viagem, Platão conhece Dião, sobrinho de Dionísio I, que já conhecia as ideias de Platão, e muito entusiasmado, faz o filósofo se aproximar de seu tio, com a intenção de que este o ensine que o bom governo se faz a partir de leis e sabedoria, e não com tirania. Porém, isso não aconteceu. Platão volta para Atenas e funda a Academia.
A segunda viagem foi por convite de Dião, que havia tomado o poder de Siracusa, já que seu tio Dionísio havia falecido e Dionísio II ainda era muito novo para tomar seu lugar. Nesse período, Dião tenta aplicar as concepções platônicas em Siracusa enquanto espera que Dionísio II se forme com sabedoria. Porém, alguns adversários de Dião aconselham Dionísio II a destronar seu tio, assim o fazendo. Depois de um tempo, Dião que saíra de Siracusa, retorna e destrona Dionísio. Porém, seus inimigos o aprisionam. Platão, que não havia participado do golpe, mas por pertencer ao ciclo de amizades de Dião, quase é vendido como escravo por ser considerado suspeito.
A terceira e última viagem acontece em função de um convite insistente de Dionísio II, que pede a Platão que exponha novamente suas ideias e que o aconselhe no exercício do poder. Mas outro imprevisto ocorre, quando Dião – que conspirava novamente para retomar o poder – é assassinado e todos seus aliados são perseguidos e presos. Platão é mantido como prisioneiro, sob suspeita de ter confabulado na conspiração.
Para encerrar, Dionísio II publica uma obra que, segundo ele, expunha as ideias platônicas. Mas na realidade, a obra só tratava de assuntos políticos e técnicas governamentais ao melhor estilo sofista. Após essa decepção, o filósofo consegue a ajuda de um amigo para retornar à Atenas com uma certeza: fazer de um rei um filósofo, é algo impossível.
Na Carta VII, Platão expõe a relação prática entre a Paideia e sua Teoria do Conhecimento, além de ser uma autobiografia política e filosófica. Mas o que nos interessa aqui é a parte que diz respeito ao conhecimento das coisas. Está certo que, na Carta VII, sua explicação sobre o conhecimento e suas 5 estruturas fica um pouco obscura. Mas podemos observar que o motivo que levou Platão a expor a teoria do conhecimento na Carta VII, foi demonstrar que os modos do conhecimento do homem ainda estão muito atrelados à materialidade, isto é, das paixões, das inclinações, das sensações e assim por diante.
Platão começa distinguindo quatro modos de conhecimento, sendo os três primeiros o “nome”, a “definição” e a “imagem”. O quarto modo seria o próprio “conhecimento”. E depois desses quatro modos, haveria um quinto elemento, sendo este a “própria coisa em si”. Para melhor entender o que está sendo exposto, o filósofo utiliza o “círculo” como exemplo.
O Nome: “círculo”. A Definição: “figura geométrica que possui todos os seus lados na mesma distância do centro”. A Imagem: “um traçado com um compasso, a imagem de um círculo”. O Conhecimento: ocorre em nossa mente no momento em que o Nome, a Definição e a Imagem são produzidos, isto é, o “conhecimento” compreende os três primeiros modos de conhecer e distingue o circulo nos mesmos. Mas neste quarto modo, nós sabemos que aquilo que conhecemos por meio dos três primeiros modos não é a coisa de verdade, a coisa em si. Pois todos esses modos de conhecimento estão impregnados de aspectos “sensíveis”. E finalmente, a Coisa em Si: o circulo é o circulo por si só, independentemente de mim ou de qualquer outra pessoa. Conhecer o circulo de verdade requer a contemplação direta do intelecto, quando este – o circulo – se liberta do Nome, da Definição e da Imagem, ou seja, quando se libertar dos aspectos sensíveis do conhecimento.
Conclusão: só conseguimos chegar na “coisa em si”, segundo Platão, por meio de um “atrito”  ou “fricção”entre os quatro primeiros modos, criando assim uma “faísca” que nos faz enxergar a ideia pura. Se nos ativermos aos quatro primeiros modos, de forma repetida e incansável, conseguiremos ao menos contemplar a verdade daquela coisa, mas a partir do momento que falarmos, cantarmos, desenharmos esse coisa, ela já não é mais ela.
Para fechar o assunto, Platão critica a reação que geralmente a maioria das pessoas apresenta diante de uma primeira apresentação de uma coisa, considerando essa coisa verdadeira, sem ao menos indagar a veracidade daquilo. O filósofo deixa claro que isso ocorre em função da “má educação”. Aqui já observamos então que uma coisa está ligada na outra. A Paideia está ligada à teoria do conhecimento e vice-versa, já que para obter uma contemplação de uma ideia mais pura, é preciso que se tenha educação. Isto, para Platão é, não só a base, mas também a coisa mais importante, na qual o homem levará consigo em todos os campos que atuar no decorrer de sua vida. 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Kierkegaard e a Angústia

UM POUCO SOBRE SUA VIDA
          De início, é importante frisarmos que a filosofia de Kierkegaard é sem sombra de dúvidas o reflexo de sua vida pessoal. Não que isso não aconteça com outros pensadores, mas no caso de Kierkegaard é algo crucial, de extrema importância. Para entender sua filosofia é importante sabermos um pouco sobre sua vida.
         Kierkegaard nasceu em 1813, na cidade de Copenhague, Dinamarca. Apesar da carreira de pastor ter sido algo quase que “inevitável” em sua vida, sua preferência pela vida boêmia e o convívio social sobressaíram sobre o caminho da vida religiosa. Isso porque seu pai, cristão protestante, seguia de maneira pontual e até rigorosa demais os costumes da religião. Em função disso, Kierkegaard carregara consigo um forte senso religioso.
          Após a morte de seu pai no ano de 1837, Kierkegaard cria laços com uma jovem chamada Regine Olsen. Na realidade, Regine será o pivô de toda a Angústia de Kierkegaard, que por consequência, será a base principal de seu pensamento. Toda essa reviravolta ocorre quando Kierkegard começa a se indagar se era realmente merecedor do matrimônio. Fica tão obsecado com isso, que resolve desatar os laços com Regine.
       Tirando o fato de ter ficado absurdamente atormentado pela separação de Regine, Kierkegaard ainda acreditava que uma maldição pairava sobre sua família, desde que uma vez ouvira seu pai confessar - certa vez, enquanto embriagado – que já havia amaldiçoado a Deus quando jovem. Além de todos esses acontecimentos, Kierkegaard ainda possuía uma característica determinante para que todos esses fatos virassem um grande vulcão em erupção na sua vida: a extrema melancolia.
        Por vezes, Kierkegaard ainda tinha de conviver com os escárnios por parte das outras pessoas. Isso porque não media o teor ácido e altamente provocativo de seus escritos. A partir daí, Kierkegaard começa a se utilizar da escrita para expurgar tudo aquilo que sempre o assombrou, mas que ao mesmo tempo instigava a sua curiosidade. Vai criticar a religião, chegando ao ponto de acusá-la de heresia. E sem perder a agressividade na qual acusara a religião, vai escrever sobre o desespero, sobre o estranhamento de si e do mundo, e sobre a angústia.

A FÉ E O CONTATO COM DEUS
       Pode-se dizer que a filosofia de Kierkegaard começa primeiramente na crítica que fez com base no contraponto existente entre seu pensamento e o pensamento de Hegel. O problema para Kierkegaard está no sistema proposto por Hegel, e pelo fato do indivíduo se explicitar unicamente por ele. Sendo assim, o sujeito particular será explicado pelo geral. A conclusão disso é que, para Kierkegaard, Hegel ao criar seu sistema harmônico racional acaba por anular o homem como indivíduo.
         Mas o que mais interessa Kierkegaard não é criticar propriamente o sistema elaborado por Hegel, mas sim definir o homem como um ser individual. Para Kierkegaard, a individualidade do homem é a solidão na qual ele desenvolve a partir do momento que toma a consciência de que é um ser finito perante um ser infinito. E este homem, que agora tem a consciência de sua “finitude”, deve, portanto entender que o seu estado de “indivíduo limitado” na realidade é parte de algo ilimitado.
           Seguindo por esse caminho, agora que o homem já está posto como “individual”, tem consciência de sua finitude e de que faz parte de uma totalidade onde o sentido é o infinito (Deus), ele se depara com um fenômeno no qual nenhum sistema consegue explicar. Para Kierkegaard, esse fenômeno é um modo de existir do homem. Esse fenômeno se chama Fé.
          A partir da Fé, o homem entra em contato com o divino, e não só com o divino, mas também com todo o absurdo paradoxal que envolve a Verdade cristã. Temos como mediador entre o homem e a Verdade (Deus) a figura de Jesus Cristo. Toda a noção cristã da Verdade parte daí, isto é, dependemos de um homem nascido à muito tempo, no qual a vida permanece obscura até hoje e que foi morto crucificado. Sendo Cristo a figura da compreensibilidade do homem sobre si mesmo, e este mesmo sendo um personagem obscuro a nós, como podemos então alcançar a Verdade?
         Pois então é pelo Absurdo que entramos em contato com o divino, isto é, com a Verdade. Não há outra forma de mantermos contato com a Verdade senão pela nossa subjetividade, nosso olhar interno, já que o homem está impregnado pela culpa e é preciso que a vivencie. É dessa maneira que contatamos a real redenção de Cristo, pela vivencia da culpa, pois é por essa vivência que Cristo se faz presente, isto é, a mediação entre o Homem e a Verdade.

A ANGÚSTIA PERANTE A LIBERDADE DE ESCOLHA
          O homem em contato com Deus, tendo consciência do divino, vive apoiado na religião, pois é a forma que encontra para manter o contato com o infinito. Porém, a religião possui conceitos e costumes nos quais servem para encobrir todos os aspectos violentos da própria religião, e também para mascarar toda a angústia que a fé acarreta.
         Essa angústia na realidade é necessária, isto é, ela surge do desligamento que o homem sofre ao se voltar para a fé. Ao se deparar diante de escolhas a serem feitas, sendo essas coligadas ao infinito em que ele está voltado, o homem sente o vazio da indecisão e o fato de que a escolha deverá ser feita. Kierkegaard demonstra essa situação utilizando como exemplo o sacrifício que Deus exige a Abraão:



“Depois desses acontecimentos, sucedeu que Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: “Abraão!” Ele respondeu: “Eis-me aqui!” Deus disse: “Toma teu filho, teu único, que amas, Isaac, e vai a terra de Moriá, e lá o ofereceras em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei.” (GÊNESIS, 22: 1-2)


           Abraão se vê diante do inexplicável, de forma que uma escolha entre duas possibilidades dadas por Deus seria inevitável. Mas é preciso frisar que essa escolha não é uma escolha moral. A importância dessa escolha não está relacionada com família ou valores. O que está em jogo é a fé de Abraão, é o homem finito perante às exigências do ser infinito.
          Apesar da Liberdade de Escolha que Abraão possui, sua opção não é das mais fáceis. Pois, uma vez não atendendo as ordens de Deus, e poupar Isaac – e ele próprio - do sacrifício, ficará comprovada a sua pouca Fé, ou em outras palavras, a sua infidelidade perante Deus. Por outro lado, ao levar seu filho Isaac até o altar e consumar seu sacrifício, sua Fé e relação com Deus estarão comprovadas como verdadeiras.
Eis que a Angústia surge na liberdade de fazer a escolha. Mesmo que se consumasse o sacrifício, apesar de sua Fé estar segura à si próprio e à Deus, ainda assim continuaria a carregar o fardo de ser um assassino cruel, no qual assassinara o próprio filho.
          Percebemos o dilema que surge de ambos os lados então: se firma na Fé sacrificando o Próprio filho, sendo considerado um assassino pelas leis morais dos homens; ou poupa a vida de seu filho, provando então o seu descaso perante Deus. E para Kierkegaard essa ambiguidade nunca deixa de existir, ela é própria do homem, ela é própria da Angústia.

(Este trecho foi retirado da monografia referente ao meu TCC do curso de Filosofia entitulado: "Angústia e Medo: na Arte, na Filosofia e na Sociologia")